Quando eu era pequena, adorava ir ao hipermercado com a minha família aos sábados de manhã.
Abdicava dos desenhos animados mais fixes da semana só para poder provar um pouco de cada uma das ofertas daquelas mini bancas promocionais. A minha preferida era a do presunto. Assaltava a banca por todos os lados, na esperança de que a promotora não tivesse coragem para me dizer “já chega, não?”. A minha família às vezes levava presunto para casa, mas não era a mesma coisa. Aquele, AQUELE, fatiado no momento, diretamente da perna, é que era!
Durante uns largos anos, quando me perguntavam o que eu queria receber no Natal, eu respondia “uma perna de presunto!”. Dava mais umas opções, mas salientava que a perna de presunto era “o que me faria realmente feliz”. Mesmo assim, nunca era esse o presente que encontrava debaixo da árvore. Não somos ricos e eu percebia que “uma perna de presunto é cara, Nádia!” era uma justificação plausível, que me desarmava… Até que cresci, aprendi o dinheiro em matemática e já não me conseguiam enganar: a bonecada que me ofereciam era mais cara do que a perna de presunto!
Mais tarde ou mais cedo, percebi que ser crescido implicava uma série de coisas chatas, que envolviam conceitos também eles, chatos como “normas sociais” e “bom senso”.
A expetativa social acerca dos presentes que os pais devem dar aos filhos no Natal impedia a minha mãe de se sentir confortável em oferecer-me uma perna de presunto. Com o tempo, também eu fui crescendo e começando a achar o meu desejo infantil e disparatado. Deixei de o incluir nas cartas ao Pai Natal. Pior, deixei de escrever as cartas.
Mais tarde a minha filha nasceu e passei a ser eu o Pai Natal! Ocorreu-me que, crescida e com independência financeira, podia oferecer a mim mesma uma perna de presunto. Fiz teatro durante muitos anos… Conseguiria facilmente fingir estupefação e deixar cair umas lágrimas de felicidade quando desembrulhasse o tão desejado presente. Mas… Tudo isto destruiria a magia daquele que eu sabia que seria um dos momentos mais felizes da minha vida (a par de me graduar e casar com o amor da minha vida)!
A vida nem sempre se cumpre como a sonhamos, seja porque os sonhos mudam (passei a preferir que me dessem dinheiro e recalquei o desejo da perna de presunto) seja porque as circunstâncias não permitem que os sonhos se concretizem – durante muito tempo seria um luxo juntar presunto ao pão que tínhamos de meter na mesa.
Porém, o caráter mutável das circunstâncias faz variar a probabilidade de certos acontecimentos se darem. Mais: o estado das coisas em determinado momento é altamente influenciado pela nossa mentalidade. O tempo passou, os sonhos práticos foram-se concretizando. O pão na mesa foi garantido, e começámos a estar mais cientes do quanto vivemos presos às coisas chatas de ser crescido, do quanto a nossa mentalidade se vai distanciando do nosso âmago. Percorremos a nossa jornada com o peso das nossas obrigações e esquecemo-nos da leveza dos nossos sonhos.
Talvez eu e a minha mãe tenhamos percorrido o bastante da nossa jornada para agora procurarmos a leveza. Procuro-a dentro de mim e encontro-a fora de mim, no meu namorado. Ele é leve, sonhador, e no último Natal perguntou à minha mãe “e se oferecesse à Nádia uma perna de presunto?”.
A minha filha foi às compras com a avó, por isso sabia o que estava reservado para mim e, entre a vontade incontrolável de se rir e o questionamento sobre o nível de loucura que é preciso atingir para oferecer uma perna de presunto a alguém, dizia-me “nunca vais adivinhar o que avó comprou para ti”.
Eu era a criança que muitas vezes olhava para os presentes e mandava para o ar um palpite certeiro, mas desta vez a Margarida tinha razão: eu não conseguia decifrar o que poderia estar dentro daquele embrulho tão sugestivo, talvez pelas constantes expetativas defraudadas. Tivesse eu oito anos e teria percebido de imediato, mas com trinta não era possível que aquele fosse o “presente mais desejado de sempre”.
Quando finalmente o desembrulhei e percebi o que era, deitei-me no chão e ri incontrolavelmente até começar a chorar. Viajei no tempo. Mergulhei em recordações da minha infância que eu julgava esquecidas e transformei-me na criança que queria, mais do que tudo no mundo, uma perna de presunto.
E nada naquele momento me podia fazer mais feliz!
Dei um abraço apertado à minha mãe, pela coragem, e um beijo imenso ao meu namorado pela lembrança. Um dos meus sonhos tinha-se concretizado. As portas que passam demasiado tempo fechadas porque somos crescidos e chatos estavam finalmente abertas. Bastava entrar e começar a somar sonhos. A perna de presunto já a tenho na cozinha. Quanto a graduar-me e casar-me… Bom…