Tenho uma confissão a fazer: sou eu que como os chocolates.
Os da minha filha, os que ela nem chegou a saber que eram para ela. Os que ninguém sabe que eu compro quando vou à bomba de gasolina e devoro no caminho até casa. Esta minha confissão pública não vai ser novidade para os que vivem comigo, nem para os meus familiares e amigos mais próximos, nem para todas as pessoas a quem a minha filha já se apresentou como “Olá, eu sou a Margarida, tenho dez anos, e a minha mãe come os meus chocolates”.
A confissão serve aqui como uma espécie de exame de consciência e ponto de partida para uma reflexão.
Quanto à consciência, tenho de admitir que não me pesa minimamente! A minha filha dispõe de tudo o que uma criança de dez anos precisa para viver feliz e saudável. Tem todo o material de que precisa para ir à escola. Tem comida para todas as refeições diárias, tem um quarto sem humidade onde dormir, tem roupa limpa para vestir, tem brinquedos com que brincar. Tem amor, carinho, orientação, valores e princípios.
A minha filha tem tudo o que qualquer pai quer dar aos seus filhos e muito mais do que, infelizmente, muitos conseguem dar. É uma privilegiada quando vemos a tal big picture. Posto isto, por que raio também tenho eu de lhe dar os meus (aproprio-me deles num ápice!) chocolates?
“Coitadinha da menina, dá-lhe lá um bocadinho senão ela fica triste e revoltada e toda a sua estrutura sofre um abalo tal que ela começa a desenvolver uma qualquer psicopatia e um dia destes ainda entra na bomba de gasolina de arma em punho e rouba todos os chocolates que houver em stock e torna-se uma marginal!!!”
Não, mãe, nada disso vai acontecer. Sim, a pessoa que mais me condena por este meu comportamento é a minha mãe. Os avós, para além de encarregados de deseducação, são exímios na arte do prognóstico de cenários catastróficos a partir de situações totalmente irrelevantes. Eu delicio-me com o excesso de preocupação e com os raspanetes que a minha mãe me dá como se eu ainda fosse pequenina e inconsequente. Portanto, exame de consciência – check! Não me sinto arrependida e até desfruto bem o prato!
Quando sou abordada por alguma daquelas pessoas a quem a minha filha se apresentou em tom de vitimização com um “mas porque é que fazes isso?” tento muito conter a resposta “porque posso” e proponho uma pequena reflexão:
Será que temos de partilhar tudo com os nossos filhos?
E será que o disparate é exclusivo das crianças e daqueles que não são capazes de usar a sua razoabilidade? Será que, por eu ter crescido, tenho de castrar as minhas infantilidades inofensivas?
“Mãe” é um papel que eu desempenho e cuja dimensão não deve interferir com a do indivíduo. Como mãe, eu posso dizer “não comas mais chocolates!”. Como indivíduo, eu posso ir por trás e comer todos os chocolates que eu quiser. A esfera do indivíduo tem quase que uma existência diferente da esfera da mãe, e nessa existência os filhos podem não fazer parte se assim o entendermos. Para além disso, o disparate não tem idade. As peculiaridades de cada um tendem a sobreviver à passagem do tempo.
Sou uma adulta com uma vontade incontrolável de comer chocolate… e é isso! Trabalho para pagar as minhas contas, incluindo a do chocolate! Sou independente para ir à bomba e comprar chocolate em vez de abastecer! A minha emancipação tornou possível levantar-me a meio da noite e devorar uma tablete se assim o desejar. Claro que é um disparate! Eu não preciso de todo este chocolate na minha vida (?)… Contudo, sinto que posso fazê-lo porque a minha posição de referência para a minha filha não é frágil.
O “faz o que eu digo e não o que eu faço” é eficaz em alguns casos e este é um deles.
Ela sabe que o meu comportamento não é maldoso, que é algo peculiar da “Nádia indivíduo” e que a “Nádia mãe” vai continuar a dar-lhe nas orelhas se ela comer muitos doces. Mais: esta peculiaridade é um dos pontos que nos aproxima. Pela beleza dessa proximidade e em forma de brinde eterno a não nos levarmos tão a sério, continuarei a comer todos os chocolates que eu quiser!